A Estrela Cadente

 

D. Florinda vinha todas as noites á Janela com as faces a rejubilarem de gratidão e a alma cheia da paz que as estrelas e o luar oferecem. Todas as noites são noites de celebração. Durante a pequenez de Florinda a fogueira reunia a convite do ancião as gentes da aldeia para partilhar as crónicas marcantes de cada jornada, e por elas riam, por elas dançavam e por elas penavam. O petisco mais do que um alimento era um troféu a que se teve direito para se celebrar mais uma volta do sol e da lua. A união nasce assim em roda da fogueira. Mas agora a nova ferrovia fez deslocar os habitantes para três quilómetros mais a norte do outro lado do rio.

A casa outrora vermelha de Florinda vestiu-se agora com a cor ocre da solidão. Não da solidão sôfrega e doentia mas da solidão das coisas que vivem sozinhas sem coabitarem com outras coisas. Numa pradaria pode habitar uma só árvore sendo que a próxima árvore pode distar mil metros ou mais. Então a solidão de que a Dona Florinda se habituou é esta. A solidão das coisas que não se repetem. A própria casa da Dona Florinda acabou por ser a única que não ruiu ou cujas pessoas que se aninham no seu interior não se apressaram a correr para a outra margem. O próprio parapeito da janela do quarto de D. Florinda foi habitado durante décadas por um só vaso com narcisos. Mas por alguma razão a D. Florinda desafiou a solidão das coisas que não se repetem juntando não um mas mais dois vasos de narcisos no mesmo peitoril da janela. Agora são três vasos de três cores distintas mas que Dona Florinda crê que elas esperam diariamente pelo seu bom dia e pela pedicure possível de exercer nas pouca folhagem doente ou atacada por pequenos invertebrados.

Dona Florinda tem um animal de estimação alto e elegante. É uma girafa que quase diariamente a visita. Esta girafa vem ter com dona Florinda sempre a passo lento e a simular descomprometimento. Mas é mentira. O sentimento de D. Florinda para com sua girafa e vice versa é a de uma visita sem a qual a pradaria, o capim ou as parcas árvores que existem nunca teriam o mesmo significado, o mesmo brilho e a mesma importância. Por isso quando a girafa se detém junto à janela de D. Florinda o que por acaso acontece quase sempre à mesma hora, a girafa fica à espreita para que D. Florinda abra a janela e lhe dê o consolo da sua visita na forma de legumes e em dias de maior sorte até na forma de biscoitos de trigo.

D. Florinda sabe que é idosa e a sua contagem decrescente não é isenta de nenhum infortúnio que apresse mais a sua partida que por vontade humana será sempre o mais tarde possível.

Talvez por isso D. Florinda hoje após abrir a sua janela decidiu confessar á sua girafa:

- Tenho-me lembrado da voz do meu pai a explicar algumas coisas sobre como ele entendia o universo. Creio que já me esqueci da maioria das suas explicações. Mas há uma que ainda me lembro sobre como ele justificava o nascimento de uma estrela cadente. Olha girafinha como eu me estou a deitar para dormir cada vez mais cedo vou a partir de hoje dar-te a tua refeição e vou abraçar-te no teu longo pescoço a partir desta janela. Sabes então como nasce uma estrela cadente girafinha? Nasce do sorriso que queremos perpetuar na vontade de abraçar.





2024 © Copyright Vítor Casado

 05-03-2024

Photo by  Paula Resende, A sobrevivência num país que eu amo, Moçambique.

 

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