O Guardador de Sorrisos

Para me livrar da morte, fui colecionando sorrisos.

Fechei-os numa arca, coloquei-me a mim e à arca com os sorrisos numa jangada e fomos flutuando mar adentro.

Perguntei ao mar se precisava de sorrisos mas este respondeu-me que não.

Já tinha os sorrisos das sereias com que se envaidecia.

De tanto remar já me doíam os braços e agora tenho de remar novamente para terra com o peso e o volume da arca a dificultarem-me a tarefa de sorrir.

 

Para me livrar da morte, fui colecionando sorrisos.

Fechei-os numa arca, coloquei-me a mim e à arca com os sorrisos a caminho do topo da montanha.

O peso da arca fez com que a arca escorregasse e recuasse vezes sem conta obrigando-me a voltar a trás para lhe devolver o caminho tantas vezes repetido.

Alcancei o topo da montanha já de noite.

Perguntei ás estrelas se precisavam de sorrisos mas estas responderam-me que não.

As Super Novas e as Anãs Brancas continuam a eclodir, fintando com os seus sorrisos incandescentes os buracos negros.

 

Para me livrar da morte, fui colecionando sorrisos.

Fechei-os numa arca, coloquei-me a mim e à arca com os sorrisos a caminho de um castelo medieval.

O sol foi-se escondendo ao longo do trajeto. Mas ainda assim o suor e o vento socaram-me o rosto até alcançar a porta do castelo.

 

Os guardas deixaram bem claro que a entrada pelo portão e a pernoita só seriam possíveis mediante pagamento prévio. Esse pagamento consistiria no espólio que se encontrava no interior da minha arca dos sorrisos.

Disse-lhes que esta arca continha a minha vasta coleção de sorrisos. Os guardas reagiram soltando gargalhadas.

 

“E que fará a corte, o povo, nós os soldados, ou as crianças do reino com esses sorrisos?” Perguntaram os soldados numa atitude negacionista.

 

Eis que o diálogo foi interrompido por uma rainha em fuga.

A rainha preparava-se para transpor o portão quando o rei furioso lhe perguntou o que levava no regaço.

Ele não podia admitir que a rainha apoiasse a mendicidade distribuindo o pão da cozinha real, por mendigos e pessoas mal trajadas que provavelmente não conseguiam pagar a dizima ao Tesoureiro mor.

 

Mas a rainha sorriu com um sorriso tão longo, tão eloquente e tão doce que faço questão de o adicionar á minha coleção de sorrisos que guardo com garra e respeito.

Continuando a sorrir a rainha mostrou o seu regaço ao rei. Se pão houvera agora não há. Porque no regaço abundam inúmeras rosas de carmim vestidas.

 

O rei não querendo ser mal-afamado consentiu que a rainha continuasse na sua demanda e afastou-se. A rainha concordou em conceder o seu sorriso para eu juntar á minha longa coleção que guardo na arca dos sorrisos.

 

Uma das aias da rainha perguntou de imediato se ao abrir a arca não haveria o perigo dos sorrisos se evadirem perdendo-se para sempre esta valiosa coleção.

 

“Penso que não” Respondi.

No momento de recolher o sorriso a rainha suspirou, ergueu os braços para o céu e emanou um sorriso eloquente, simpático e mágico.

 

Assim que abri a arca algo de inesperado aconteceu. Em vez de sorrisos vimos borboletas apressadas para abandonar a arca. Em êxtase as borboletas voam e em êxtase colonizam todo o espaço acima das nossas cabeças.

 

Para nos livrarmos da morte, vamos colecionando sorrisos.

 

E os sorrisos quando são simples e genuínos arranjam sempre forma de nos visitar.

 

 

 

 



2022 © Copyright Vítor Casado

 15-05-2022

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