Despojos (I)

Mal o sol despontou ele pulou da cama meio improvisada. Atirou a mochila para as costas e pedalou. Ao longo do caminho estradas e pinheiros serpenteiam até ao mar. A guerra e o êxodo não pouparam o asfalto transformado agora em inúmeras crateras rodeadas por entulhos que tem de contornar. Vários segmentos de estrada perderam assim a sua identidade. E o que a guerra não destruiu foi surripiado pela lapidagem que se seguiu á mesma.

Edu pedala em pé inclinando-se nas curvas para cntornar as crateras. Chegou á praia pedalando agora com mais cautela. Na marginal as casas e os prédios estão devolutos. Aproximou-se do primeiro hotel. Entrou com cuidados para não fragmentar os vidros já estilhaçados que possam anunciar inusitadamente a sua presença. Edu encontra-se agora no Hall de entrada do Hotel. Olha em redor não identificando nenhuns sinais daquilo que procura. O que resta das cortinas empoadas e rasgadas ondula suavemente enquanto uma mimica de sol e sombras vai desfilando pelos objetos inanimados e esquecidos no chão.

Edu abandona o local e avança para o segundo Hotel. Embora não se aviste ninguém Edu identificou diversos sinais de ocupação por sem abrigos. Avança para o próximo hotel. Este encontra-se mais danificado do que os anteriores. No Hall de entrada jazem os escombros de várias batalhas à muito silenciadas. O pensamento de Edu pairava na ideia de que este hotel se encontrava despojado de vida quando ouviu o latir algo débil de um cão. Provavelmente num piso inferior. Depois de várias tentativas Edu descobre o acesso para o piso inferior bastante tapado por pedaços de parede e outros entulhos. Edu consegue remover os pedaços necessários para conseguir entrar no piso inferior. O cão relativamente pequeno de olhos esbugalhados está preso entre escombros e a armação de ferro de uma mesa cujo tampo se anuncia apenas por grossos vidros dispersos.  Edu dá festas e fala com o cão para o acalmar na difícil tarefa de distorcer algum ferro para o libertar. O cão está fraco e cansado já deve estar aqui à alguns dias. Para latir percebe-se que tem de se esforçar.  Depois de ficar solto dos escombros este fica próximo de Edu de cabeça baixa e cauda a abanar.  Neste processo para além do cão Edu descobre aquilo que tanto fez questão de procurar nos hotéis da marginal. Um piano acústico e felizmente intacto. Edu avança solenemente para o mesmo. Conserta a posição da cadeira suja para se sentar. Testa a tecla Lá da oitava que contém o Dó central. Vê-se primeiro nos seus olhos e depois no seu sorriso que está feliz pelo timbre e pela afinação. Inspira longamente. Leva os seus dedos a passearem-pelo teclado para as primeiras notas de uma suave melodia em que o único esforço é o de premir com suavidade as teclas para que o volume do piano seja baixo. Edu já se tinha esquecido do cão quando este dá dois passos para se colocar ao lado da sua cadeira com um latido agora mais definido. Edu interrompe a melodia e faz-lhe mais uma festa inclinando-se para passar a mão no seu dorso mas o cão aproveita para ladrar com mais afinco. Edu percebe que o cão estaria preso já a algum tempo e tira da mochila a sandes que seria o seu almoço. O cão ingere rapidamente a sandes e mostra-se satisfeito abanando a cauda ainda com mais entusiasmo.

“Chama-se Biscoito e é nosso…”Ouve-se numa voz juvenil.

Dois irmãos um rapaz e uma rapariga de 15 e 16 anos aproximam-se do cão e agradecem os meus cuidados. Um adulto que vim a saber tratar-se da avó está por perto junto aquilo que outrora foi a soleira da porta e pergunta com o rosto um pouco sério para depois se abrir num sorriso: “Pode tocar mais alguma coisa?”

 

 

  


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