Pietá
Continuamos a subir neste balão de ar quente de nome Pietá.
Eu a menina de 14 anos Dora a quem pedi para trazer o violino e a mãe da menina
que se chama Cláudia e celebra deste modo o seu aniversário. Cláudia de início
recusou esta ideia mas depois de saber que era um sonho da filha e comigo a
insistir acabou por aceitar. É um sonho bonito o de Dora, passear com a mãe oferecendo-lhe
como prenda de aniversário esta magnífica viagem de balonismo e poder ainda tocar
das alturas as músicas de violino que deseja oferecer á mãe.
Os ventos empurram-nos fazendo nos deambular pela paisagem
altiva. Lá em baixo o arvoredo e as clareiras aglomeram-se numa visão rara de
que a natureza funciona em conjunto. São grandes e eloquentes cada um dos seus
elementos quando estamos lado a lado com eles. De cima esta natureza é imensa e
vai para lá de qualquer ponto do horizonte.
Aqui em cima cantam-se os parabéns a Cláudia e Dora começa a
tocar o seu violino. Uma melodia doce que nos devolve tempos longínquos ou tão
doce que talvez nem tenha idade. Estamos acima das primeiras nuvens e
continuamos a subir na copiosa companhia de melodias de violino.
Cláudia a mãe de Dora sofre de doença oncológica e a
quimioterapia não tem surtidos os efeitos desejados. Cláudia está magra, sem
cabelo e apresenta um rosto esquálido que se esforça para sorrir.
Dora acaba de terminar a musica de violino. Estende os olhos
para fora do cesto do balão e afirma. “Estamos parados acima das nuvens”.
Inicio então os procedimentos de descida mas o balão não está a cooperar, contínua
imóvel. Ainda não tenho dois anos como balonista mas a experiencia adquirida
devia permitir-me estar á vontade para manobrar este balão de ar quente. Sinto
algum nervosismo que tento disfarçar pedindo a Dora que toque mais uma das suas
músicas de violino enquanto descemos.
Mas o balão não desce mantendo-se acima das nuvens. Dora
começa a tocar o violino e algo parece mudar nesta paisagem pintada de céu. As
nuvens transformam-se na água de um lago que fica logo abaixo do cesto do balão
e uma chuva fina começa a cair paulatinamente. Depois a chuva engrossa fazendo
o lago ganhar vida com a receção de cada gota de chuva. Ficamos os três a
contemplar o lago majestoso, estamos os três maravilhados e receosos. Cláudia
pergunta “Isto não estava previsto pois não?”
De facto não estava previsto.
Vieram-me á memória as palavras da pessoa idosa que me
vendeu o balão. Uma pessoa que já tinha percorrido o mundo e aproveitou para
cultivar muitos dos ensinamentos de culturas interessantes e ancestrais.
Ele dizia mais ou menos assim:
“Se vires o lago não o abandones até teres visto a Pietá. Se
chegares ai receberás uma mensagem de alguém que elegeste como especial.” E
continuou. “Caso queiras chegar ai só tens de ir acrescentado algo de extraordinário
nas tuas viagens com o Pietá”.
Cláudia removeu o lenço que tinha á cabeça para esconder a
falta de cabelo originada pela doença oncológica. A sua admiração pela
magnitude do lago irá transformar-se em tristeza assim que compreender que eu
não sei exatamente como siar daqui para regressarmos a terra firme. A clareira
de onde partimos. Os manómetros de pressão e de ar dizem-me que a maioria do
combustível já foi consumido para chegarmos aqui. O que sobra jamais será
suficiente para o regresso. Os telemóveis aqui também não funcionam impossível
enviar um SOS.
Sinto um arrepio em todos os poros da pele mas ao olhar para
a luz promissora do sol um alívio reconfortante acomoda-se em mim. A chuva
continua a cair trazendo dentro de cada gota o que parece ser um retrato
imperfeito ou inacabado de alguém. Milhares de gotas de água com retratos
dentro são devolvido á água do lago.
Os lábios o rosto e os olhos de cada retrato não estão
devidamente definidos. Peço então a Dora: “Dora toca mais uma música de
violino”. E Dora faz com os dedos um pizicato ao mesmo ritmo que os retratos
vão caindo de dentro dos casulos de água. Não sei bem porquê mas resolvi pedir
a Cláudia e a Dora “Pensem nos vossos antepassados. Vamos os três pensar e
enviar amor aos nossos antepassados”. O que se seguiu foi surpreendente. Os
retratos dentro de cada gota gigante mostram agora com nitidez um sorriso. Todos
estes rostos de pessoas que desfilam para este lago são retratos talvez do seu
melhor sorriso em resposta á nossa intenção de paz e de amor para com os nossos
antepassados.
A musica do violino de Dora terminou e a chuva de sorrisos
também. Coma ausência de chuva o lago passa a ser visível em toda a sua
extensão. Para onde quer que se olhe a vastidão da água em manto de azul é
enorme. E uma espécie de estátua parece formar-se num ponto do horizonte. As
nuvens parecem moldar… Uma réplica da Pietá de Miguel Ângelo. Uma mãe com o
filho prostrado nos braços.
Cláudia afirma: “Qual será o significado desta Mãe com o
filho prostrado nos braços?... No meu caso passa-se o contrário. Sou eu que
estou doente com cancro e serei eu a falecer nos braços de alguém ou talvez
apenas numa cama de hospital”.
Cláudia estava transtornada com a ideia precoce da partida.
Quando se parte cedo o mundo para os que ficam e que são mais próximos adquire
o estatuto de mundo incompleto ou inacabado. Fica mais difícil acreditar num
caminho que nos vá afastando da perda.
Avalio uma tristeza profunda em Cláudia e pretendo animá-la:
“Talvez o significado desta estátua aqui e agora tenha outro significado que
nenhum de nós esteja a compreender neste preciso momento… Dora queres tocar o
teu violino?”
E Dora prossegue convicta da harmonia que produz para nós e
para o universo. Enquanto isso e sem quase darmos conta a estátua parece que se
desvaneceu dando lugar a uma enorme quantidade de borboletas. Parecem
multiplicar-se e circundam todo o espaço em nosso redor.
Manejo os manómetros para proceder á descida controlada do
balão. Imensas nuvens são para nós a estrada desta descida. A beleza de todos
estes formatos de nuvens continua a ser um mistério. Porquê estas formas e não
outras? Será que as nuvens serão a manifestação de sorrisos? Dos nossos
sorrisos, dos sorrisos dos que nos rodeiam ou dos sorrisos daqueles com os
quais nunca nos cruzámos? Se calhar nunca saberemos.
Agora com o solo já à vista três borboletas mantêm-se dentro
do balão. Perseguem-se brincando e esvoaçando.
Quando o cesto do balão toca no solo cada uma das três
borboletas cai aos pés de cada um de nós transformando-se em carta manuscrita.
Cada um de nós agacha-se para apanhar a sua carta.
E sim é a carta daquela pessoa especial por quem sentimos
admiração. Aquela pessoa que está, e sempre esteve do nosso lado mesmo quando
não a víamos. Por vezes não distinguimos quem, mas há sempre alguém que nos
apoia e nos protege.
Assim que cada um terminou a leitura de sua carta manuscrita
esta volta a transformar-se em borboleta e de novo estas três borboletas
divertem-se perseguindo-se e ganhando altura no azul do céu.
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