Soprano
Apetecia-lhe abrir os braços e levantar bem alto a voz quando
ouviu pela primeira vez o Avé Maria de Shubbert. Mas essa foi apenas a primeira
constatação porque depois dessa, todos os dias ela sente a necessidade de
igualar e acompanhar todos os outros sopranos que vai ouvindo falar. Mora num
dos pontos altos da cidade, ‘Cabeço’ faz parte do nome da rua onde mora. A rua
que á pouco chegou a subir e a virar à esquerda para continuar a subir. E nessa
colina alta de onde se vislumbra parte da cidade com poucas casas, sem prédios
com o rio a correr ao lado do percurso pedestre. Ela experimentou. Armazenou ar
nos pulmões e depois cantou soltando a voz como se de uma gaivota se tratasse.
Uma gaivota tem sempre o xadrez de vários mundos por onde vaguear. O azul do mar, o azul do céu, os ocres de terra com ou sem as manchas de verde pintadas. Aqui na colina com os caracóis do cabelo a debaterem-se com o vento e uns olhos grandes registando em memória o máximo de paisagens adjacentes ela cantou e sentiu-se leve, livre e aconchegada pelo eco soturno e maravilhoso da sua voz.
Uma gaivota tem sempre o xadrez de vários mundos por onde vaguear. O azul do mar, o azul do céu, os ocres de terra com ou sem as manchas de verde pintadas. Aqui na colina com os caracóis do cabelo a debaterem-se com o vento e uns olhos grandes registando em memória o máximo de paisagens adjacentes ela cantou e sentiu-se leve, livre e aconchegada pelo eco soturno e maravilhoso da sua voz.
Quando parou sentiu-se feliz e integrada na força que faz
mover o vento e nos sons agradáveis que nos circundam e no qual se incluem o
chilrear dos pássaros ou o bater das gotas de chuva numa calçada
Ficou feliz e decidiu retornar a casa correndo. Afinal de
contas agora o percurso era a descer.
A partir da noite que nasceu depois daquele dia ela ia
deitar-se fechando a porta do quarto para poder cantarolar baixinho. E baixinho
cantarolava imaginado que era no cume que se encontrava. A mecânica das coisas
repetia-se. Os pulmões agradecem a chegada de oxigénio novo. A alma eleva-se e
a voz desprende-se inundado os poros de tudo o que é material e imaterial.
E uma voz assim não tem dono. Porque faz parte do sol,
integra as árvores e a relva verde. Faz parte do vento e está nas asas dos
pássaros quando desenham volutas para se elevarem ou empoleirarem. A voz sim é
a voz dela mas não tem dono. Porque as coisas quando são perfeitas são
infinitas e intemporais.
Traçou para si o objetivo que cantar na perfeição três árias
difíceis pelo elevado desempenho vocal. Noite após noite ensaiava e
experimentava fechar os olhos naquelas partes em que a canção não pede que se
cante mas pede que se sinta. Nessas partes ela viu desenhar-se uma estrela e
podia testemunha-la olhando pela janela. Era uma estrela bonita e envergonhada
que a acompanhava nos ensaios e a estimulava a não desistir mesmo nas raras
vezes em que pudesse desafinar.
Quando parava de cantar a estrela afastava-se solenemente e
ela abria a janela para lhe dizer adeus e agradecer. “Felicidade, canto e gratidão
serão para mim coisas distintas ou serão manifestações do mesmo mistério?”
Questiona-se ela frequentemente.
As árias já estão ensaiadas na perfeição e chegou a hora de
as apresentar em público. À medida que os ensaios reduzem antes do grande
estreia a estrela foi-se afastando como se mais acanhada se tornasse. Como
lidar com esta nova situação? Colocar o fim numa ária bonita que se deseje
prolongar até à eternidade pode ter este efeito. O efeito de trazer de volta
algum vazio ou alguma tristeza.
E esta menina de lindos caracóis e olhos grandes voltou a subir a colina. Voltou a encher os pulmões de ar e a cantar de braços abertos para receber e retribuir a gratidão de poder assim cantar. Olhou para o céu procurando a sua estrela no crepúsculo da tarde mas não a identificou. Está a ensaiar três novas árias igualmente difíceis e sublimes. Precisa de proteção e segurança para poder superar o desafio.
Onde está a sua estrela de eleição? “Por favor volta estrela”. Pronuncia com a voz trémula de lágrimas. Sente o vazio mas resolve continuar imaginando o xadrez do voo da gaivota que a eleva e a transporta. Canta epicamente de novo, olhando novamente para o céu a fim de buscar a estrela. Continua a cantar e quando do alto da colina resolve olhar para a planície que circunda o rio e o caminho pedestre repara que há um unicórnio que corre livremente. E livremente saltita embelezando a paisagem e para que este unicórnio não pare, esta menina de lindos caracóis e olhos grandes continua a cantar.
E uma voz assim não tem dono. Porque faz parte do sol,
integra as árvores e a relva verde. Faz parte do vento e está nas asas dos
pássaros quando desenham volutas para se elevarem ou empoleirarem. A voz sim é
a voz dela mas não tem dono. Porque as coisas quando são perfeitas são
infinitas e intemporais.
2018 © Copyright Vítor Casado
Foto: Jacinta Almeida
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