Talasnal

Talasnal 

Gosto de olhar o céu à hora em que ele boceja com uma mão cheia de estrelas a despontar. Gosto de vir ver o mar pela manhã com a praia deserta e a promessa de um dia novo a nascer. O eco permanente das águas a marulhar. A praia é a pele que o tempo veste na contagem de horas de dias e de anos. Tudo aquilo que não conseguimos guardar e que era inevitável perder parece estar visível nas ondas. Elas elevam-se e a derrocada repete-se por porções difusas de espuma que avançam até nos beijar os pés. Feito o reconhecimento, o mar devolve-nos as nossas melhores memórias, os nossos melhores momentos reais ou que ainda estejam para vir.

É assim que me sinto na proximidade do mar. É assim que me sinto na presença da serra da Lousã e em Particular na Aldeia do Talasnal uma das suas várias aldeias de xisto. O azul do céu e os novelos de nuvens podem muito bem ser as ondas que elevam os nossos pensamentos a outros patamares. A paz que se alcança apenas por se estar num sítio que nos devolve sensações de sublimidade. A areia de acesso á água é todo este verdejante irregular de ervas, estopa e fetos dispersos por pedras afiadas e irregulares que nos embelezam os percursos até às casas dispostas como cachos a alturas diferentes e dão assim roupagem ao dorso da serra.

Com pequenas mochilas às costas vamos efetuar a caminhada desde o Burgo no sopé da serra com as piscinas naturais da ribeira de São João a oferecer uma musicalidade de água sempre presente nas quatro estações do ano. Um pouco acima das piscinas o castelo medieval altivo e outrora aposento da princesa Peralta e seus tesouros. A princesa deambulava nesta paz repleta de árvores, serra e céu enquanto o seu pai o emir muçulmano Arunce se deslocava ao Norte de África em demanda de conquistas e mais tesouros. Daqui do Burgo até à aldeia do Talasnal é sempre a subir. Por várias centenas de metros teremos a companhia das várias ermidas da Nossa Senhora da Piedade. Todas elas a despontar em sítios ermos com escadarias a convidarem o nosso acesso para deleite de paisagens de vegetação frondosa. Cada paisagem captada pelo nosso olhar é um momento épico de vastidão que nos enche a alma e nos convida a prosseguir com o percurso.

Pelo declive do caminho pedonal distendem-se soutos de castanheiros, carqueja e fetos. Nas breves paragens de repouso um ou outro esquilo desliza velozmente numa árvore próxima exibindo por poucos segundos a sua cauda mais ou menos com o mesmo volume do seu corpo. Depois desaparece. Os esquilos são muito rápidos frustrando as nossas tentativas de os fotografar. Continuamos a subir o caminho pedonal e sinuoso. A meio do percurso ainda são audíveis as melodias de água tangidas pelas piscinas naturais bem lá em baixo.

O céu agora está mais próximo e contra algum cansaço que possa existir todo este azul ao alto renova-nos de uma certa leveza que iremos levar daqui como recordação. O trinado de uma águia ágil pode despontar. Águias e milhafres vagueiam por todo este azul num deambular altivo cujo intuito é aproveitar as correntes deslizantes. Não há caminho para estas aves. O caminho faz-se deslizando e abraçando com as asas as correntes que as podem transportar sem esforço até um horizonte longínquo.

Chegamos à aldeia do Talasnal pela zona da eira fundeira. Lá ao longe a maior altitude o Alto do Trevim avista-se da eira principal da aldeia. Daqui até ao Trevim dista uma vastidão imensa de paisagem composta por duas longas encostas separadas por um vale cujo sopé não é permitido á nossa vista alcançar. Toda esta paisagem é encimada pelo omnipresente azul do céu. Quem já foi ao alto do Trevim também deve ter passado por Santo António da Neve. Localidade erma com uma capela e dois fundos poços que serviam para guardar a neve. A neve era empalhada e seguia para Lisboa em carros de bois para utilização diversa, serviço efetuado outrora pelos Copeiros d’el Rei.

O centro da aldeia é a eira de tamanho médio que se alcança por poucos degraus a ladearem a bica. Esta mantém permanentemente a água a jorrar e mais uma vez o som audível e prestativo da água a pulular por aqui. Quando levamos a água às mãos a pele mantem-na por muito tempo. Por vezes interrogamo-nos se esta água tem algum unguento mas sabe bem. Originalmente estas casas de lousa tinham apenas dois pisos de uma única divisão. Ao piso inferior era dado o nome de loja e servia de pernoita para os animais. Não existiam chaminés pois uma ardósia levantada era suficiente para a evacuação dos fumos.

Casas reconstruídas, Caminhos sinuosos e simpáticos. Esta aldeia tem a particularidade de sorrir a quem a visita. A chegada e a partida colocam-nos num abraço prolongado com o céu. O regresso pelo caminho pedonal também já não irá ser tão longo pois agora já estamos providos de asas. Foi talvez por isso que aqui viemos. 

2017 © Copyright Vítor Casado
Foto: Sweet but wild

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