A água vem pela enseada como por generosidade do mar. O frio da manhã ainda mal acordada apodera-se das mãos entretidas na faina de remar. O barco aproxima-se da zona onde as ondas vêm morrer entre dois paredões de rocha frondosa.
Agarro num bloco de papel e numa caneta e
convido Débora a escrever nele tudo o que fez de errado ou de mais desagradável
na vida. Faço o mesmo relativamente a mim e leio bem alto o quanto escrevi.
Sinto um rubor nas faces mais alto do que a coragem porque volto a ler em voz
alta vezes sem conta. Débora perde a vergonha começando a ler em voz alta tudo
o que escreveu. O sol começa a fazer na água que nos circunda um espelho de
pequena ondulação cintilante e algumas gaivotas circundam-nos provavelmente interrogando-se
do seu protagonismo nesta tertúlia.
Agarro no papel que Débora escreveu com
algum rol de tristezas e queixume e faço-o marinheiro de uma garrafa bem tapada
com uma rolha de cortiça. Débora agarra a garrafa e impulsivamente atira-a para
as ondas. Repito o mesmo gesto com outra garrafa que reservei para mim. Podiam
ser lágrimas os salpicos que nos vêm enxaguar os rostos salgados. O sol abriu
um caminho bem iluminado até à praia, coando a água com pequenos diamantes. O
mar alto devolve-nos uma paisagem imparcial pela presença de algum
nevoeiro.
Virei a proa do barco em direção ao areal.
Débora refeita de algum ânimo pede para ser ela a remar para o regresso.
Seguimos a réstia de luz que o sol deixou cair na água enquanto pessoas
minúsculas em terra levam os seus corpos para as fainas de um dia acabado de
acordar. Débora recorda os bons tempos da juventude aqui passados entre o areal
e poemas escritos e enrolados para serem deitados ao mar em garrafas. Foram
inúmeras as viagens de barco idênticas a esta, a várias horas no mesmo dia. De
manhã, à tarde e até rente ao nascer da noite.
Débora pergunta: "Que será feito
daqueles poemas que atirei ao mar à tantos anos atrás? Será que alguma vez
alguém encontrou um único? Se não tivéssemos que regressar desejaria ser a
tinta de um deles tendo papel como cobertor e silenciosamente vaguear pelo mar
até alguém me encontrar."
in
Poiesis, X – Editorial Minerva, 2003, p. 206.
2003 © Copyright Vítor
Casado
Foto: A correr na praia - Aguarela de Vítor
Casado
Comentários
Postar um comentário