O
navio
A chuva
cai como laminas afiadas num céu cor de chumbo. Jazem pelo convés os corpos de
marinheiros moribundos. Primeiro o ataque de pirataria e agora esta tempestade
insolúvel a liderar o caos.
Abro os
olhos tanto quanto a chuva o permite. Também eu o comandante me encontro ferido
e caído algures no balaústre da proa. Gritos, explosões e o manuseio de espadas
são sons que ainda não percebi se pertencem ao passado ou ao presente desta
jornada.
Por entre
chuva, nevoeiro, fumo e destroços um rol de vozes trespassa este cenário plúmbeo.
Estão a
atacar de flanco. Recolher a vela da Mezena. Tripulação disponível a
barlavento. O grande mastro vai cair. É preciso cortar o cordame do soçobro ou
seremos arrastados para o fundo do mar.
De início
os joanetes giravam na recolha das velas mas a quebra dos mastros tornou inútil
a prontidão dos mesmos. Sem leme, com os mastros quebrados. Subindo e descendo
desarticuladamente as vagas o navio ferido de guerra e de tempestade segue um
rumo aleatório e a sua segurança é instável.
Tantas
léguas, tantas manobras e tanto mar navegado para depois sermos vencidos por
piratas e por uma tempestade infindável de dias e noites seguidas. Quanto vale
a vida de um homem no mar? Distante da terra, de mulheres e dos filhos. Quanto
vale? Cada rosto dos familiares mais chegados tem apenas o privilégio de poder
permanecer encarcerado numa pequena moldura, atirada ao chão quando o mar não
está de feição.
Sinto o
corpo dorido e ensopado pelas águas da chuva e das vagas. Tento-me levantar mas
estou ferido e a sangrar em vários pontos do meu corpo. No mar a acalmia nunca
dura para sempre. Sabemos isso e aceitamo-lo da mesma forma que aceitamos que o
Outono depois do verão vai encurtar-nos os dias e reduzir a nossa fruição da
luz solar. No mar as estações do ano são mais impercetíveis, pois podem-se
suceder aleatoriamente. Verdade no mar tudo é mais aleatório inclusive a
probabilidade de nos mantermos com vida.
O
universo colocou-me à prova saindo com vida tanto do ataque dos piratas como da
longa tempestade. Deus e o universo deram-me uma segunda oportunidade. Vou
usufrui-la mostrando-me grato. Grato por estar vivo. Grato por poder amar
amigos, mulher e filhos. Grato por respirar. Por sentir o latejar da vida.
Grato por poder ver o sol das manhãs a despontar. Oh sim meus Deus eu estou-te
grato.
E ao
sentir-me assim ferido mas acima de tudo grato algumas lágrimas misturaram-se
com a água da chuva e das vagas. E foi então que parei de raciocinar para me
certificar de que no navio alguém está a tocar o violoncelo pois a tonalidade é
certa e está em crescendo.
Agora
sim. Consegui reunir forças para me erguer. A coxear consigo chegar aos
aposentos. Lá dentro uma dama manuseia o violoncelo com o seu arco. Embora os
danos sejam muitos o violoncelo ainda consegue dar dignidade a este espaço.
Logo atrás de mim alguns membros da tripulação igualmente desaparecida por
estes dias, vem também para testemunhar esta melodia magnífica que está a
devolver a vida a nós marinheiros e a este navio.
Agora
sim. Tenho a certeza de estar vivo ainda que esteja a sangrar. Agora sei que
esta Dama do Dar e este violoncelo vieram para nos reconfortar. Vou mudar de
vida. Vou deixar o mar e vou voltar a terra. Quero realizar o meu sonho de
criança que consiste em recuperar a profissão do meu pai. Luthier. Obrigada
Dama do mar.
2017 © Copyright Vítor Casado
Foto: pixabay.com
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