Luthier
Reza a tradição que uma profissão escolhe-se por gosto e paixão. Numa das
vezes que Sandro foi à praia em adolescente teve um feliz acaso com o destino.
Um daqueles acasos que a acontecer será apenas uma vez e dele far-se-á história.
Nessa ida à praia num dia ventoso de janeiro apenas para rever a areia e as
ondas em tons claros com o azul carregado do céu, Sandro viu a boiar na orla da
espuma uma garrafa trazida pelas ondas. De início não ligou mas depois de olhar
para ela inúmeras vezes pareceu-lhe que esta continha objetos lá dentro. Sandro
apanhou a garrafa e apressou-se na tarefa não tão simples de lhe extrair a
rolha.
Com a rolha sacada Sandro inverte a garrafa sobre uma das mãos aberta e da
garrafa caem quatro pecinhas de madeira. Olha as pecinhas com atenção. Não
demorou muito até as identificar como Cravelhas. As peças de afinação das
quatro cordas de um violino.
Desde a altura desse achado, em que Sandro tinha quinze anos até aos dias
de hoje, Sandro acredita que o destino não acontece por acaso. Tudo tem um
motivo. E segundo ‘O segredo’ tudo isso se reduz à lei mais antiga do universo
a lei da atração.
Curioso… quem teria tido a ideia de colocar as quatro cravelhas de um
violino dentro de uma garrafa? E com que intenção? Com a intenção de as
eternizar? Premiar a pessoa que as encontrou ou pelo contrário uma maneira
diferente de se desfazer delas…
O interessante é que provavelmente a pessoa que as manufaturou, sim porque
ainda são visíveis os sinais de corte e alisamento nas respetivas cravelhas.
Terá sido quase de certeza a pessoa que as manufaturou que as colocou dentro da
garrafa. Qualquer outra pessoa não teria tido esse cuidado limitando-se a
oferece-las ou a deitá-las no lixo. Mas não foi isso o que aconteceu. A pessoa
quis devolver estas peças a uma eternidade humana possível e deixou que fosse o
oceano a decidir da sorte de serem ou não encontradas. Mas sim as cravelhas
foram encontradas.
E agora vinte e cinco anos depois Sandro continua a tornear peças idênticas
para completar os seus violinos. O primeiro que fez na vida segundo o método
único e rigoroso que foi aperfeiçoando foi feito com amor e devoção. Sempre que
pensava na afilhada pessoa a quem se destinava a oferta Sandro caprichava e por
vezes cantarolava feliz.
Da madeira bruta Sandro conseguia esculpir e dotar os instrumentos de um
sopro de forma e de vida que a posteriori permitiria aos seus possuidores a
criação musical. Sandro considera-se por isso um facilitador de sonhos e esse
sentimento transmite-lhe felicidade e exclusividade.
Diariamente Sandro chega cedo à sua Lutheria e efetua a preceito as tarefas
necessárias para a conclusão dos seus instrumentos, mais ou menos como uma dona
de casa segue o seu livro de receitas que vai aprimorando durante a execução.
Hoje é um dia como tantos outros Sandro estende devotamente a planta da
construção do violino em cima da mesa. O seu rosto multiplica sorrisos enquanto
retira de várias caixas as peças necessárias para a construção do Stradivarius.
"Luthier", por vezes Sandro divaga sobre esta palavra deixando-a
escapar audível entre os seus lábios. "É aquilo que decidi ser a partir de
determinado momento. Ou seja, construtor de violinos". Afirma Sandro para
quem possa estar presente a convite seu ou por visita à sua Lutheria. A maioria
das peças está ainda envolta em panos e Sandro confirma que estas se encontram
torneadas com muita precisão.
Na mesa estão expostas as mais de 70 peças que compõem o violino. A planta
da construção do violino tem o curioso nome de violino explodido. Com o brio de
cicerone exclusivo, Sandro pretende mesmo demonstrar os dotes de Luthier nas
poucas vezes que tem estas visitas ou convidou alguém. E passa a explicar:
“Isto é o tampo superior em abeto. No lado interno irão ser colocados a barra
harmónica e a alma. Cada um deles servirá de apoio a um dos dois pés do
cavalete. Temos agora aqui o tampo inferior, as laterais e o braço em ácer.
Estas peças chamam-se blocos: existem seis no total, um superior, um inferior e
quatro laterais, dois nas extremidades da cintura do lado esquerdo e dois nas
extremidades da cintura do lado direito. Os blocos servem para reforçar o
interior e são de salgueiro. Costumo colocar em três as minhas iniciais. As
iniciais do Mestre. As cravelhas de afinação e o ponto que é a extremidade
oposta ao braço são em ébano.” Faz uma pausa como que tentando digerir tudo o
que acabara de dizer.
“Praticante depois de terminar o trabalho ainda vou para casa onde me
divirto a elaborar sonoplastia ou seja fundos musicais para documentários e
pequenos filmes.” És mesmo um grande aficionado pela arquitetura não és?"
Pergunta a visita de hoje.
"Sim claro. Como diz Mário Quintana: A música é a arquitetura do tempo
e a arquitetura é a música do espaço". "Muito sublime essa afirmação..."
Responde a visita. Sandro sorri dilatando o seu rosto magro enquanto pestaneja
algumas vezes seguidas.
“O que falta agora fazer é colar as peças, Originalmente usava-se uma cola
animal por causa do colagénio, mas em vez disso vamos utilizar uma cola
sintética. Tem uma linda voluta este violino. A voluta faz parte da proporção
áurea que é uma constante algébrica já usada na construção do Pathernon por
Phidias. O Pathernon foi construído em Atenas em meados do século 5 a.c. A
constante de proporção áurea é 1,6 com muitos dígitos à direita. No sorriso da
Geoconda, Leonardo da Vinci também fez uso desta proporção áurea.
Recapitulando, as peças primárias que compõem um violino de cima para baixo
são: voluta, cravelhas, espelho, tampo, ouvidos ou efes, cavalete, afinador
fixo, estandarte, botão, queixada e alma.” Fez uma breve pausa para sorrir e
continuou:
“Isto aqui é uma caixinha aparte com o breu. O breu é uma cera para passar
nos fios do arco. Hoje em dia as 4 cordas, mi, lá, ré, sol são de aço mas
originalmente eram de tripa animal. Prendem-se no estandarte e depois podem ser
esticadas e afinadas com as cravelhas. De tempos a tempos deve passar-se giz
para conservar as cravelhas.”
“O violino tem um som muito agudo não tem? Comparativamente à voz humana
o violino corresponde a quê?”. Perguntou a visita. “Corresponde ao soprano. É
de fato o mais agudo instrumento de cordas da família que se compõe pela viola,
violoncelo, contrabaixo e violino.” Respondeu Sandro. “O som é produzido pela
vibração das cordas quando tencionadas ou afrouxadas mas também podem ser
dedilhadas com os dedos. Conheço pelo menos uma pessoa que é exímia a fazer a
passagem do arco para a dedilhação. Quando ela dedilha, o seu corpo obedece
vibrando em uníssono com a música.” Afirmou Sandro. “A essa técnica dá-se o
nome de pizzicato.” Rematou a visita. “Bem por agora já aqui temos um
trabalhinho muito interessante. Penso que a única coisa que temos de fazer de
raiz é a alma. É uma peça interna do violino mas tem de ser a última peça a ser
colocada antes das cordas, e após o verniz secar." "E nós vamos
conseguir fazer isso tudo?". Perguntou a visita. “Sim claro que vamos.”
Respondeu Sandro com muita determinação.
De início Sandro transformou a garagem de casa numa oficina e aventurou-se
como Luthier. Fez alguns moldes para acamarem as peças durante e após as
colagens. Como música de fundo escutava músicas de violino que o leitor de MP3
jorrava e assim visualizava alguém especial de nome Cláudia a tocar este
violino artesanal concebido segundo o padrão Stradivarios.
Para Sandro era provável que o Deus Apolo no Olimpo também tivesse Cláudia
como inspiração. Conseguia assim visualizar Cláudia de arco em riste e o queixo
pousado na queixada do violino que estava a construir. Onde quer que Cláudia
toque este violino imaginava o vento a passear-se pelas colunas de qualquer
templo milenar, o ar a beijar o trigo e a água a reproduzir-se por fontes e
cascatas. O sol a lamber das fontes e o feno a reluzir com pinheiros e abetos a
curvarem-se fruindo a audição deste violino pelas mãos de Cláudia.
O violino começa a ganhar forma com os tampos sobrepostos e afastados
apenas pelas laterais e pelo braço onde irá colocar o espelho. A caixa levará
num dos extremos o estandarte e o botão. Mesmo ainda por terminar, dá vontade
de lhe tocar com os dedos e de lhe tirar os moldes de colagem. Os dois efes ou
ouvidos simétricos conferem-lhe um ar simpático e permitem que o seu discurso
pungente ou não se torne audível e meloso. Estes dois efes recordam-lhe sempre
“O violão de Ingres” uma foto pintura que mostra uma senhora sentada com estes
efes justapostos nas suas costas. Man Ray o seu autor encarnou nesta foto a
simbiose feminina com o violoncelo ou o violão. Man Ray mais do que pintor foi
essencialmente fotógrafo e equacionou muito bem a velha rivalidade entre
fotografia e pintura ao afirmar: "Em lugar de pintar pessoas, comecei a
fotografá-las... Pinto o que não pode ser fotografado... Fotografo as coisas
que não quero pintar, coisas que já existem."
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